Targum
O Targum: Como os Judeus Antigos Resolveram o Dilema da Tradução das Escrituras Sagradas
Palavras-chave: Targum, tradução bíblica, judaísmo antigo, Torá, aramaico, exegese bíblica, hermenêutica judaica, manuscritos antigos
Introdução: O Desafio da Compreensão
Imagina que estás numa sinagoga há dois mil anos. O rabino lê um texto sagrado numa língua que já não é a sua língua materna. Como garantir que todos compreendem a mensagem divina? Este foi o dilema que o povo judeu enfrentou após o exílio babilónico, quando o aramaico se tornou a língua do quotidiano, mas a Torá permaneceu escrita em hebraico.A solução encontrada foi genial e única: o Targum, uma forma revolucionária de "tradução-interpretação" que preservava o texto sagrado original enquanto o tornava acessível ao povo.
O Que é o Targum?
O termo "targum" significa simplesmente "tradução" em aramaico. Contudo, no contexto religioso judaico, representa muito mais do que uma simples transposição linguística. Era uma versão-paráfrase do texto sagrado realizada durante os serviços sinagogais, que combinava tradução literal com interpretação teológica.
As Origens Históricas
Segundo as fontes talmúdicas, o exemplo mais antigo de targum remonta à célebre proclamação da Torá por Esdras. Quando o texto menciona que "leram o livro da Torá por secções" e "explicaram o seusignificado" (Neemias 8:8), os sábios interpretaram isto como a primeira manifestação do sistema targúmico: o texto hebraico era lido primeiro, seguido imediatamente da sua tradução em aramaico.
Como Funcionava o Sistema Targúmico
O processo seguia regras muito específicas:
Estrutura da Leitura
- Para a Torá: Após cada versículo, dava-se imediatamente a tradução em aramaico
- Para os Profetas: Liam-se três versículos de cada vez antes da tradução
- Textos proibidos: Alguns excertos eram lidos em hebraico mas não traduzidos (como Génesis 35:22 ou Êxodo 32:21-25)
O Papel do Meturgeman
O tradutor (meturgeman) tinha de seguir regras rigorosas:
- Não podia usar texto escrito
- Não podia olhar para o texto original durante a tradução
- Devia traduzir de memória para evidenciar a diferença entre original e tradução
O Princípio Fundamental
Uma máxima do século II d.C. resumia o dilema: "Quem traduz de forma absolutamente literal é um falsificador; quem acrescenta algo é um blasfemo." Esta aparente contradição reflete a tensão entre fidelidade e compreensibilidade.
Tipos de Targum
Targum ao Pentateuco
- Onqelos (babilónico) - versão mais literal
- Pseudo-Jonatán (palestino) - versão mais interpretativa
- Versões palestinas - incluindo fragmentos da Geniza do Cairo
- Neófiti - targum completo descoberto em 1956 na Biblioteca Vaticana
Targum aos Profetas
- Jonatán ben Uziel (babilónico)
- Fragmentos palestinos
Targum aos Hagiógrafos
Versões para os restantes livros bíblicos (excepto Daniel e Esdras-Neemias)
Exemplo Prático: Génesis 1:27
Para compreender melhor como funcionava o targum, vejamos como diferentes versões interpretaram o versículo sobre a criação do homem:
Targum Neófiti (mais teológico):
"E a palavra do Senhor criou o filho do homem, à semelhança do aspecto do Senhor os criou; macho e companheira os criou. A glória do Senhor os abençoou..."
Targum Pseudo-Jonatán (mais elaborado):
"E Elohim criou o homem à sua semelhança... com 248 membros (como o número dos preceitos positivos) e 365 nervos (como o número dos preceitos negativos), e cobriu-o de pele e encheu-o de carne e sangue..."
O Legado dos Targumim
Os targumim representam uma solução única na história das traduções religiosas. Ao contrário das traduções modernas, que procuram ser invisíveis, os targumim assumiam abertamente o seu papel interpretativo. Eram simultaneamente:
- Pontes linguísticas entre o hebraico e o aramaico
- Ferramentas pedagógicas para ensinar a fé
- Veículos de interpretação teológica e legal
Manuscritos de Qumrán
Entre os famosos manuscritos do Mar Morto encontraram-se targumim de partes do Levítico e de Job, datando do século I a.C., o que confirma a antiguidade desta tradição.
Relevância Contemporânea
O exemplo dos targumim continua relevante hoje para:
Tradutores Modernos
- Mostra como conciliar fidelidade e acessibilidade
- Demonstra que toda tradução é, inevitavelmente, interpretação
Estudiosos da Bíblia
- Oferece insights sobre interpretações judaicas antigas
- Ajuda a compreender o desenvolvimento da exegese bíblica
Comunidades Religiosas
- Exemplifica como preservar tradições enquanto se mantém a relevância
- Mostra a importância da mediação cultural na transmissão da fé
Conclusão
O targum representa uma das mais fascinantes soluções para o eterno dilema da tradução religiosa. Ao recusar escolher entre fidelidade absoluta ao texto original e compreensibilidade total para o público, os sábios judeus criaram uma terceira via: a "tradução-interpretação" que honrava tanto o texto sagrado como as necessidades da comunidade.
Esta tradição milenar continua a inspirar tradutores e intérpretes religiosos, lembrando-nos que a verdadeira fidelidade a um texto pode exigir, paradoxalmente, a coragem de o transformar para o tornar vivo e relevante para cada nova geração.
Bibliografia
Nuevo Diccionario de Teologia Biblica
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